ENTRE AGITAÇÃO E PAZ

 ENTRE AGITAÇÃO E PAZ


Lilia Souza

Escritora, membro do Centro de Letras do Paraná, da Academia Paranaense da Poesia; autora das obras Olhares canhestros, Chá das cinco, dentre outras.

liliasouza@uol.com.br


       O calendário anuncia o início do verão, e a tarde gela-me as costas, os pés; sopra-me a nuca um vento gelado. 

       Na urbe de fim de ano, congestionamentos em todas as rotas; as ruas se engasgam com a fuligem de incontáveis veículos amontoados, na indecifrável sanha de chegarem a destinos de exploração consumista. A cidade enlouquecida quase inteira cabe dentro dos shoppings e comércios de rua, em busca de ofertas e do inatingível original, na insaciável fome de compras e sede de fugacidades. Proliferam-se árvores enfeitadas, luzes coloridas. Em portas de lojas e praças de grandes centros comerciais, papai noel se faz figura central e de encanto – a substituir o Menino no presépio, relegado a figura decorativa e nem notada; filas de crianças para uma foto com o bom velhinho (como se fosse ele o motivo e a celebridade da festa), segredam-lhe aos ouvidos seus pedidos de Natal – ó Jesus Cristinho, Príncipe da Paz, ouve-me; apenas clamo-te sabedoria, serenidade a meu ansioso coração! 

       Ah, Menino Deus, menos de bens e mais de bem, o mundo precisa. De amor e paz, fraternidade. Buscar o que vem do alto, pois aqui tudo passa. Ensina-me o desapego deste mundo e a garimpar e guardar os verdadeiros tesouros. 

       Meu peito requer sossego da constante inquietação que desde sempre me açoita.

       Ao fim do dia deleito-me com o sol a mergulhar no lago do Tanguá – mirante para o poente. Centenas de sulistas aplaudem o espetáculo que diariamente se renova e se reapresenta (sem expectadores, ou) à plateia que pede bis.

       Minhas retinas misturam gravadas cenas de tardes outras, em lugares vários. Multiplicam-se imagens. Alto da XV, olhos atentos ao palco em que a encenação ocorre entre araucárias, que erguem seus braços louvando o Senhor da Criação. 

       Astro rei a se derreter em rubro e ouro nas águas do Potengi, explodindo em emoção dentro do peito; violino toca Ave-Maria, enquanto vagarosamente completa-se o mergulho, e a noite desce sem pressa o seu manto, sob a brisa nordestina. A imaginação me leva a imergir no mesmo rio, desfazer-me também em dourado líquido.

       À margem esquerda do Paraíba, novo espetáculo em cada fim de escaldante tarde. Por trás da Mantiqueira – a flertar com a do Mar –, vermelho e cuidadoso, o sol desce de rapel, a algum desconhecido abismo – para percorrer misterioso túnel e, magnífico, surgir do outro lado do mundo, na manhã seguinte, a florescer fogo da serra oriental. Leito do Paraíba, berço a embalar meu primeiro choro, eterno incunábulo a me dar de beber tantas lembranças. De sua margem direita, desde priscas eras, olho o mundo, enxergo seus relevos e cores, seus ruídos e metálicos cheiros, a cidade a crescer e se esparramar em paralelas.

       Quatro elementos. Pés na terra, imaginação solta ao ar em altitudes, fogo a arder nas carnes, águas de lembranças primeiras e a me carregarem em infinitas correntes a desaguarem no mar da vida. 

Inebrio-me, deixo-me banhar, liquefaço-me, permito-me levar, mergulhar... naufragar...

       Jesus Menino, fonte de água viva, dá-me tua amorosa mão, trança nos meus teus cabelos... Mostra-me tua gruta – num recanto de Belém, na encosta da serra, à beira do rio, no fundo do mar...  Paz...


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Crônica publicada em 31/12/2022 como:


SOUZA, Lilia. Entre agitação e paz. Jornal DeFato.com, Ed. 6.553 – ano XXIII, Mossoró – RN, sábado, 31 dez. 2022. Opinião. Espaço Jornalista Martins de Vasconcelos. Organização Clauder Arcanjo. p. 2.


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