A canção desesperada

A canção desesperada

 

                                                                                                              por tonicato miranda

                                                                                                                 Curitiba, 30.11.2024.

 

        Estou na sala, sentado com o livro de Gabriel García Márquez na mão “O amor nos tempos do cólera”. Após trinta anos, volto a ler este formidável romance. Para acompanhar a leitura, em ritmo lento, fazendo fundo musical sem desvio da atenção, coloco na TV um jazz smooth

 

        Coloquei a música muito baixa, acho que no volume 6, dado ser pouco mais de 6h da manhã. Assim, não acordaria a vizinhança próxima (minha esposa e o neto), assim como a vizinhança distante. Continuava lendo, percorrendo o amor desenfreado de Florentino Ariza pela jovem Fermina Daza, mas na sequência da programação do canal da TV mudou o jazz.

 

        Ela começa com o piano de Gerald Cleyton e o virtuoso Roy Hargrove a música Strasbourg St. Denis. Impossível continuar com a leitura. A música me remeteu à primeira década do novo século, quando escrevi o poema 8 flores e a canção desesperada, publicado pela primeira vez no blog do J. B. Vidal – “Palavras, Todas Palavras”, em 01/04/2009.

 

        O poema diz assim:

 

        Você, / rosa vermelha / e um punhal brilhante sobre a mesa / do corredor até a mim vem / uma canção desesperada   //   Você, / lírio branco / e vinte lírios brancos sobre a mesa / que nada rivalizam ou contêm / os acordes da canção desesperada   //   Você, / amor perfeito / caneta e carta sobre a mesa / tudo a escrever ao meu bem / dentro da canção desesperada   //   Você, / violeta quase preta / há na tarde reflexos sobre a mesa / tudo que o Sol vai levar da tarde para além / junto à canção desesperada   //   Você, / cacho de acácia / desfolhando-se sobre a mesa / meus dedos tristes, sem / dedilhar pianos na canção desesperada   //   Você, / ipê amarelo / pintando o papel sobre a mesa / vindo à noite qual um trem / embarque-me na canção desesperada   //   Você, / rosa branca / derramada sobre a mesa / derrame fragrâncias em mim, mais de cem / me perdura nesta canção desesperada   //   Você, / manacá da serra / decorando meu sangue sobre a mesa / nhagatirão teu nome também / branco e roxo juntos na canção desesperada.

 

        Ah, música querida, amante do meu amor – ele se foi. Era um grande músico. Colocou em Strasbourg St. Denis todo o ritmo, toda sua alma, como quem pede passagem para a eternidade. Ressaltou o bairro de Strasbourg St. Denis, de Paris, e toda a emoção de quem estando longe da sua terra natal, se apaixona e quer nascer de novo, em outro lugar, em outro país, em um bairro, em uma rua, numa casa específica, talvez com outra família. Nascer na família dos vagabundos enamorados da rua, dos porres de cerveja e vinho, das tampas de latas de lixo reviradas.

 

        Onde estava eu, em 2008, quando fiz este poema? Não sei. Menos ainda sei de quanto ele me impactou a ponto de deixá-lo em Banho Maria ,fervendo a panela de baixo, tal qual a canção desesperada que volta, inapelavelmente, a povoar minha mente neste amor nos tempos do cólera do García Marques.


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