Consultório do
CONSUMIDOR
“As Beiras”
22 de Julho de
2022
ACORDO ARRANCADO
COM A ‘SOLA DO PÉ’,
É ACORDO “VARADO”
POR SER DE “MÁ-FÉ”!
“ Dizem-me que as dívidas de fornecimento
de água já estavam prescritas desde 2012, mas os serviços convenceram-me – para continuar a beneficiar do serviço – a
celebrar um acordo que permite durante 24 meses pagar, de modo parcelado, as
importâncias em atraso, para além dos consumos mensais, facturados à parte.
Perante o que me acaba de ser dito tenho dúvidas
sobre a validade do acordo e pergunto-me se devo deixar de pagar sem risco de
sofrer um corte.”
1.
De harmonia com o que
prescreve o artigo 10.º da LSPE – Lei 23/96, de 26 de Julho [que ora vai na 7.ª
versão] –
“1 - O direito ao recebimento do preço do
serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
…
4 - O prazo para a propositura da acção ou
da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a
prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
…”
2.
O Código Civil dispõe no
seu artigo 300.º
(Inderrogabilidade do
regime da prescrição)
São nulos os negócios jurídicos destinados
a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar ou dificultar por
outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos.
3.
Negociar o pagamento de
dívida prescrita será o mesmo que prorrogar o lapso durante o qual a dívida
poderia ser judicialmente exigível.
Eis o que o artigo 304 do Código Civil
prescreve sob a epígrafe “efeitos da prescrição”:
“1. Completada a prescrição, tem o
beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor,
por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
2. Não pode, contudo, ser repetida a
prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita,
ainda quando feita com ignorância da prescrição; este regime é aplicável a
quaisquer formas de satisfação do direito prescrito, bem como ao seu
reconhecimento ou à prestação de garantias.
3. ...”
4.
Ora, nada há de
espontâneo numa negociação forçada com a cominação de que o fornecimento não
poderá de futuro ser assegurado se o
“acordo” se não celebrar.
5.
Ademais, para além da sua
consagração, em geral, no disperso ordenamento jurídico dos consumidores, a
LSPE, no seu artigo 3.º, estabelece como princípio geral norteador o da boa-fé:
“O prestador do serviço deve proceder de
boa-fé e em conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do
serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que
se pretende proteger.”
6.
O fornecedor age
patentemente de má-fé e viola as prescrições do artigo 334 do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito,
quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos
bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
7.
Estamos perante uma mera
obrigação natural, de harmonia com a artigo 402 do Código Civil:
“A obrigação diz-se
natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente
exigível, mas corresponde a um dever de justiça.”
8.
Ademais, para além do que
estabelece o Código Civil, no seu artigo 300, transcrito supra, a LSPE define a
natureza injuntiva dos direitos dos consumidores, na esteira do que a LDC o faz
no seu artigo 16, como segue:
“Carácter injuntivo dos direitos
“1 - É nula qualquer convenção ou
disposição que exclua ou limite os direitos atribuídos aos utentes pela
presente lei.
2 - A nulidade referida no número anterior
apenas pode ser invocada pelo utente.”
9.
Para além do mais, ao
consumidor se abre a porta do ressarcimento não só pelos danos patrimoniais
como pelos não patrimoniais (morais), como decorre do n.º 1 do artigo 12 da
LDC.
10. Além disso, o simples facto de nem sequer ao
fornecedor se consentir accione os meios judiciais, dado o sentido e alcance do
n.º 4 do artigo 10.º da LSPE em tema de “caducidade do direito de acção”,
[o prazo para a
propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses,
contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os
casos.],
mais reforça o vício de
que enferma o acordo, cuja nulidade é patente por estar inapelavelmente ferido
de morte.
EM
CONCLUSÃO
1.
É nulo o acordo de pagamento a prestações [de modo parcelado, pois]
de dívida prescrita referente ao fornecimento de um serviço público essencial.
2. Incumbe
ao consumidor a arguição da nulidade.
3.
Os montantes, entretanto,
satisfeitos à luz do acordo nulo terão de ser restituídos à vitima, sendo-lhe
lícito requerer uma indemnização pelos danos patrimoniais [materiais} e não
patrimoniais [morais] daí decorrentes.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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